março 29, 2008

Diário de um peregrino

Diz a lenda que o nome Compostela significa “campo de estrelas”, e que foram elas que guiaram o eremita Paio, no fim do século I, até onde estariam os restos do apóstolo Santiago e de dois discípulos seus. A catedral começou a ser construída em 1705, acima das ruínas de um necrotério romano, por ordem do rei Afonso II, após voltar da sua peregrinação.

Existem, hoje, vários Caminhos de Santiago: o primitivo, o inglês, o português, o via da prata (sul da Espanha), o francês… Pode-se fazê-los a pé, de bicicleta ou a cavalo. Os que chegam, recebem um certificado de peregrinação, a chamada Compostela.

É impossível viver em Santiago e ficar alheio à peregrinação. Ao contrário, você se sente obrigado a experimentá-la, mesmo que seja o trecho mais curto para se ganhar a Compostela, 100km. E como este Correspondente cá está passando um tempo nessa cidade, foi por isso que ele e uns amigos decidiram cometer a aparentemente estranha aventura de sair de casa para voltar a ela caminhando. E foi assim:

DIA 1

Depois de uma noite muito mal dormida, acordo às 6 da madrugada e preparo o café, para mim e uma das companheiras, a qual eu deveria buscar na estação de trem às 7h, voltar para casa para deixar suas coisas e, então, seguirmos juntos para a rodoviária, onde os outros cinco participantes estariam nos esperando para o ônibus das 8h. Não conseguimos chegar a tempo, e o jeito foi pegar o próximo carro, das 9h45.

Ao chegar na rodoviária, fico sabendo que uma das companheiras se despertou, arrumou a mochila, sentou-se no sofá e desistiu. Mulher de pouca fé. Então éramos seis – três homens e três mulheres. E mais de três horas tivemos de viajar até chegar a Pedrafita do Cebreiro, um pueblo com, no máximo, 20 casas. Paramos ao lado de um posto de gasolina e de uma placa que indicava a direção para o Caminho de Santiago.

Começamos a empreitada alegres, com piadas; eu comecei a vender garrafinhas de Garotage por sete euros e fui chamado de farsante por ter comprado duas meias anti-bolhas, a seis euros o par. Meia hora subindo montanhas e ninguém conseguia mais contar piadas sem interrupção. Caminhamos nove quilômetros margeando a pista e pelo meio do mato até Hotel da Condessa, um povoado com cara de abandonado, de ar fantasmagórico. O albergue dos peregrinos nos surpreendeu pelo asseamento. Como o pagamento “não obrigatório” de 3 euros impede de ter lençóis e fronhas limpos todos os dias, recebemos roupa de cama descartável. Água quente para o banho só existiu para um. De jantar, barrinhas de cereal e Gatorage, já hiperfaturado para 5 euros, o gole.

DIA 2

É regra ter de deixar o albergue antes das 8h. Mais barrinhas de cereal e Garotage no café.

O plano era chegar a Sárria (km 110), onde por suposto nos esperariam mais 3 companheiras – a de pouca fé inclusive. E passando por Samos, uma das poucas bifurcações do Caminho, e que aumentaria o nosso trajeto uns 3 quilômetros a mais.

Caminhamos até as 11h em meio a um nevoeiro denso, a baixa temperatura congelando as gotas de umidade no meu cabelo. Estávamos há mais de 1300km de altitude. O Caminho abandonara o acostamento e adentrava uns metros a mata. A primeira ladeira que tivemos de subir é de preocupar o coração dos fumantes e ociosos. Sem contar os caninos enormes que nos grunhiam e que não sabíamos ser cães ou lobos, estes tão comuns na Galícia. Em um dos muitos povoados fantasmas pelos quais passamos, habitados somente pelos cachorros/lobos, uma velha bruxa surge da neblina nos oferecendo crepes. Eu tenho a certeza de que a comida está enfeitiçada, mas sou obrigado a comer um pedaço do crepe que ela oferece a um amigo, pensando: vai que ela se sente ofendida e lança uma azaração – ou, pior, um avada kedrava. Ela pede 1 euro pelo crepe, e meu amigo lhe dá, com as mãos trêmulas.

Adiante, fazemos uma pequena pausa para um café e a primeira selada do dia. É que o passaporte do peregrino que recebemos deve ser selado duas vezes por dia – em uma igreja, albergue ou qualquer negócio –, um controle mambembe de que você continua no Caminho. Um cachorro pequenino, branco com pintas marrons e de ar vulpino nos enche o saco.

Lá pelas 12h30 concluímos os 16 quilômetros até Triacastela, parada para almoço. À entrada da cidade, encontramos um húngaro que estava fazendo o Caminho francês completo e, pasmem!, o cão vulpino que, em momento algum, nos ultrapassou ou nos seguiu. Comemos um delicioso menu do dia – 2 pratos + vinho por 8 euros – e seguimos. Uma companheira começa a sentir o incômodo das primeiras bolhas e dores no joelho. Ela começa a ficar para trás, se perde da gente uma vez e, às 5h da tarde, após termos passado por Samos, pensa em voltar para esta cidade e passar a noite, porque não aguentaria os supostos 15km que faltavam até Sárria. As outras meninas e um dos meninos também começam a sentir as bolhas. Após uma pausa para discutir se deveríamos aceitar ou não a dica-logro de um campesino de seguir pela estrada, e não pela mata, para encurtar caminho, rumamos todos para a mais difícil das caminhadas. Chegamos a Sárria pelas 20h30, semi-mortos. Lá, o cão vulpino nos surpreende de novo. Eu o batizo de Uni, pois tenho a certeza de que, como a bebê unicórnio de Caverna do Dragão, por trás daquela carinha fofinha se esconde um ser do mal, que atrapalhará a chegada ao nosso destino. Nos encontramos com as demais companheiras, mas não há vaga para todos no albergue dos peregrinos. Por sorte, nós, meninos, encontramos, ao lado, um albergue confortável por 5 euros. Antes de dormir, encaramos o prato de filé com batatas fritas, ovos e bacon mais gorduroso de todos os mundos possíveis.

DIA 3

Camilla Costa, mais sábia e lacônica que eu, disse tudo no seu diário de peregrina: “Aí começa de verdade o caminho da iluminação. Você acorda e se encontra no ponto exato onde Buda começou sua jornada rumo ao Nirvana: descobrindo que tudo é dor.” Às 2h, depois de andar uns 12km, finalizados pela pior descida da jornada, paramos para almoçar em Portomarín, cidade à beira do Miño (o mesmo rio da famosa canção jovenguardista galega). O grupo se divide: as novatas, sem compreender a necessidade de carne para continuar a andar, resolvem ir ao supermercado, comprar material para sanduíche e outras besteiras para beliscar. Ao tirar o sapato, uma das três meninas que iniciaram a jornada nO Cebreiro vê o estrago causado por uma bolha mal estourada na noite anterior: pus e sangue. Ela anuncia sua desistência. As piadinhas à la Capitão Nascimento feitas durante os dois outros dias – “quem vai ser o zero-um?”, “pede pra sair!” — não aparecem. Na verdade, todos ficam muito sentidos, sem saber o que dizer ou fazer para ajudá-la; me sinto como esses participantes do Big Brother quando alguém deixa a casa. É, o Caminho deixa a gente meio brega, mas poderia ser pior: poderia ter sido minha a frase que um peruano disse, no quarto ou quinto dia — “Eu aprendi que o Caminho é como a vida: tem baixadas e subidas, e é preciso continuar”.

O frio aperta e o caminho até Gonzar, onde pensamos em passar a noite, é sofrido. Pela primeira vez a pergunta-chave – “por que eu tô fazendo isso?” — toma conta da cabeça. Superação física, orgulho de terminar o que já foi começado e a insistência em buscar a tal transformação que o Caminho proporciona, unidas, são boas respostas. Uma das novatas, que me gastara 16 euros no supermercado, percebendo a imprudência, começa a tentar se desfazer dos víveres, sem se importar para a mescla fatal que é choriço defumado com Nescau.

Chegando em Gonzar, a notícia de que só havia 1 vaga no albergue do peregrino, e o outro custava oito euros. A menina que, no segundo dia, começou a ficar para trás se desespera. Não consegue mais andar, mas não quer ficar sozinha ali. O jeito, então, é caminhar mais 4 quilometrozinhos (1 hora!) até Ventas de Narón, onde certamente terá vaga. A menina que não consegue andar liga para o pai, aos prantos, em busca de consolo. Chegamos a Ventas (km 81 aprox.) congelados e exaustos, mas temos a sorte de pegar o melhor albergue de todos. E com água quente, muita, para uma ducha de meia hora. Eu, além das dores nas pernas, ganho assaduras nas virilhas. Ando feito um cavaleiro sem cavalo.

Nenhum sinal de Uni. Isso me conforta.

DIA 4

A menina do choriço com Nescau desiste logo no café. Zero-dois. Quem fica, forma quatro ritmos: os meninos à frente, às duas novatas atrás, a menina do telefonema, munida de um pedaço de pau transformado em cajado e, surpreendentemente, uma das decanas, que vinha bem, sente o joelho e fica na traseira de todos. Até o almoço ela será a zero-três, nossa última baixa. O caminho deveria inspirar bondade e compaixão, mas, carregando a mochila da zero-três quando não podíamos mais nem com as nossas, nós, meninos, somos invadidos por um certo individualismo, advindo do objetivo de superação e, talvez, pela responsabilidade que, invariavelmente, os homens têm de assumir sempre pelas mulheres ao seu lado. Decidimos conversar, e elas nos compreendem quando maldizemos a dificuldade que é diminuir o ritmo e fazer paradas que esfriam o corpo acostumado ao movimento. Combinamos de nos reunir com mais esparsamento, tipo de duas em duas horas, nas pausas para descansar.

O objetivo da tarde era chegar em Melide (km 52). Nos arredores da cidade, num lugar de descanso para peregrinos, encontramos quem?, quem? Sim, Uni! A menina do telefonema abraça o cachorrinho e está segura de que ela é nosso protetor. Começo a achar, no íntimo, o mesmo, mas mantenho a opinião anterior pelo bom humor.

Chegamos ao albergue às 6 e, mesmo sem sono, ficamos na cama o resto da noite, descansando o corpo. O chuveiro, de água fria e que funcionava só durante uns três segundos a cada pressionada no botão, é motivo de piadas. Encontramos o amigo húngaro e duas senhoras de La Coruña, que estavam fazendo o Caminho pela terceira vez e disseram-nos que a experiência o torna mais fácil. É muito forte, essa ligação entre os peregrinos. Durante as caminhadas, é de lei desejar un “buen camino” a todos, além de trocar umas palavras sobre a vida, bolhas e tudo mais. Não sinto mais os dedões dos pés: eles são só calos. As meias continuam a funcionar.

DIA 5

O sol, que já vinha nos abandonando aos poucos desde o terceiro dia, some de vez no quinto. Chuva, chuva, chuva. Eu me sinto mais cansado que nunca. O fato de já ter andado dois terços é que me impele a seguir. Chegando a Arzúa (km 37), onde combináramos de nos encontrar com as meninas para o almoço, sinto o joelho doer, e forte. A cada passo uma fisgada, e a imagem do histórico deslocamento de rótula do Ronaldinho toma minha cabeça. Começo a andar como uma tartaruga, mas os meus outros companheiros homens me motivam, parando sempre para me esperar. Pego um pedaço de madeira e faço de cajado, melhora um pouco. A força que ponho na mão que segura o cajado é tanta que me arranca um naco de pele, deixando a carne à mostra.

O trajeto da tarde era de 20km, até Arca O Pino, a 13km de Santiago. A dor e o frio começam a fazer efeito na metade do trajeto: começo a enlouquecer. Rio, falo sozinho, começo a gritar para os outros que deveríamos ir até Santiago de uma vez só, no fundo porque eu não sabia se meu joelho iria funcionar no dia seguinte. Decido tatuar-me a concha de Santiago. Nunca antes eu tivera vontade de fazer uma tatuagem, sempre alegando que nada na minha vida era tão perene. Mas aquele sofrimento merecia uma homenagem, eu precisava de uma marca além de um possível joelho podre para o resto da vida. Depois fico pensando no Eterno Retorno nietzschiano, e me causa pânico imaginar que tenha de enfrentar o Caminho infinitamente. Em dado momento, encontro um altar a um peregrino que morrera durante o Caminho. Aquilo aumenta a loucura e penso na minha própria morte.

A três quilômetros de Arca, em Santa Irene, vejo, à porta de um albergue, um monte de cajados melhores que os meus. Com dor na consciência, deixo o meu e pego dois, um dos quais jogo fora com pesar, pois parte de mim queria voltar e deixá-lo de novo no lugar.
Os dois companheiros, por insistência minha, desistiram de me esperar. Andam alguns metros mais à frente. Na entrada de Arca, uma mulher passando de carro me buzina e me faz um gesto de “força!”. Me sinto como se estivesse fazendo a mais boa ação que jamais fizera e os pensamentos loucos me deixam, agora é só paz. Ou cansaço. Ao chegar ao albergue, compramos uma garrafa de vinho no supermercado ao lado, para aquecer a alma.

DIA 6

Domingo de Páscoa. Todos ansiosos para chegar a Santiago a tempo para a missa do peregrino, de meio dia. Tento acordar todos às cinco da manhã, como o planejado, mas ninguém se move. Acordam só lá pelas seis e partimos às sete. Vejo meninos de 9 e 12 anos fazendo o Caminho. Também uma menina paraplégica, com sua família. Penso se o peregrino dono do meu cajado roubado conseguirá chegar sem ele. Me acho o ser mais desprezível de todos. Mas logo, na subida até o Monte do Gozo (que tem esse nome porque é dele a primeira vista de Santiago), os pensamentos se acabam, sou só corpo, moído, aleijado, mas que anda, anda, anda, porque não há o que fazer, e porque está tão perto… O ritmo de quatro quilômetros por hora já não existe, e cinco me parecem dez. Uma peregrina me dá a dica de não andar pelo asfalto, mas pela terra, disse que é melhor para os pés. Sem pestanejar, obedeço-a.

Apesar da vista do Monte do Gozo ser frustrante, pois não dá para ver a catedral, o fato de já estar na entrada de Santiago recupera o meu humor, e eu começo a conversar com alguns outros jovens peregrinos. Ao entrar nas ruas, o Caminho perde a magia, eu me sinto um tico idiota em caminhar todo sujo e torto diante de lojas e restaurantes da zona nova, mas então entro na rua São Pedro de Mezonzo, que faz parte da velha cidade, e a sensação de vitória, a emoção de estar perto de casa, de ver Ste, Mari e Betta, meus roomates, minha família aqui, toma conta de mim. Não ligo para os olhares dos turistas ao baixar a Praça Cervantes e, com um nó na garganta, vejo a catedral. Espero os outros para entrarmos juntos. A menina do telefonema, que sofreu muito mais que eu, com o joelho fisgando desde o segundo dia, me abraça e chora como um bebê. Zero-um, zero-dois e zero-três aparecem para nos receber. Betta e Ste também. Entro na catedral pela primeira vez, enquanto o coro gregoriano entoa algo que me conforta, apesar do frio que faz. Me sento nas escadas e sou só música. Quando ela pára, reconheço os peregrinos que encontrei durante todos os dias e os cumprimento. Depois, vou pegar o meu certificado, a Compostela, que – ninguém me avisou! — não veio em latim por eu não ter alegado motivos religiosos no formulário em que preenchi. Me perco de todos na saída e decido ir pra casa sozinho. Pela primeira vez, sinto uma falta danada de Uni, que nunca mais encontrei.

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