setembro 25, 2007

"24 Horas" vira disciplina universitária

Folha de São Paulo, 25/09/2007

Série é bom ponto de partida para discutir "questões sombrias que democracias enfrentam na batalha contra o terrorismo", diz professor.

Em entrevista à Folha, acadêmico que propôs a matéria explica seu plano de curso e alfineta críticos do conservadorismo do seriado.

LUCAS NEVES - DA REPORTAGEM LOCAL

Estudantes de direito e juristas, tremei: Jack Bauer, o protagonista linha-dura da série de TV "24 Horas", está prestes a trocar os pouco ortodoxos interrogatórios da fictícia Unidade Contraterrorista da CIA por uma beca. Ou quase isso.

A partir de janeiro de 2008, ele bate ponto no campus da Universidade Georgetown, em Washington, como principal referência bibliográfica (ou videográfica, se preferir) da disciplina-seminário "A Lei de "24 Horas'", oferecida no programa de mestrado da faculdade de direito da instituição de ensino. Depois de lidar com explosões nucleares, atentados contra políticos e a liberação de vírus letais e gases tóxicos em Los Angeles (e, de quebra, faturar dois Globos de Ouro e 17 Emmys, o principal prêmio da televisão norte-americana), o personagem interpretado por Kiefer Sutherland chega à academia pelas mãos do professor Gary Sharp.
Em entrevista por e-mail à Folha, ele conta como teve a idéia de levar "24 Horas" para Georgetown, por onde já passaram nomes como o ex-presidente dos EUA Bill Clinton e o atual presidente da Comissão Européia, o português José Manuel Durão Barroso. "Certa noite, assistindo ao programa, percebi que ensinar o direito contraterrorista no contexto dos temas levantados por "24 Horas" seria uma forma maravilhosa, singular e divertida de abordar as questões sérias e sombrias que todas as democracias enfrentam na batalha contra a ameaça global de terrorismo."

Sharp diz que os assuntos discutidos em classe com o apoio das tramas do seriado incluirão "as implicações legais, nos EUA e no mundo, do uso de força militar contra patrocinadores estatais e não-estatais do terrorismo, assim como as liberdades civis, detenções, interrogatórios e tratamento dos capturados nos campos de batalha ou dos presos por suspeita de terrorismo" (veja no quadro ao lado exemplos de "cenas paradidáticas").

Não há mais vagas Já não há mais vagas -e circula lista de espera- para a disciplina. As aulas começam em janeiro, coincidindo com o início da sétima temporada da série na Fox americana (no Brasil, a Fox exibiu na semana passado o fim do sexto ano, e a Globo passou o quinto em janeiro). Os encontros acontecerão às terças, para aproveitar os "ganchos" fornecidos pelo episódio mostrado na noite anterior. Segundo Sharp, ser fã da série não é pré-requisito para freqüentar as aulas. "Vou estruturar o curso de forma que aqueles que não são fãs não apenas aproveitem e participem ativamente [das discussões] como também virem aficionados só para identificar [no programa] o próximo assunto ligado ao direito", brinca. O currículo de Sharp traz passagens pelo Departamento de Estado, pela Biblioteca do Congresso e pela Promotoria do Corpo de Fuzileiros Navais. Atualmente, é conselheiro do Departamento de Defesa para assuntos internacionais. À reportagem, ele pede que frise a independência (em relação aos cargos públicos) do trabalho como professor. "Todos os textos e discussões serão baseados somente em
informações de domínio público."

Entretanto, sai pela tangente ao ser indagado sobre o que pensa das respostas do governo Bush às ameaças terroristas -e se elas estão de fato distantes da cartilha linha-dura de "24 Horas". "Vou pedir [aos alunos] uma análise estruturada e metódica das leis norte-americanas e internacionais. No entanto, também solicitarei que mantenhamos um espectro de trabalho bipartidário, deixando comparações e julgamentos para outro fórum", afirma.
Pesado fardo A reportagem insiste para que ele comente a abordagem política do terrorismo na série, vista pela crítica como conservadora, inclinada à direita. "Repetindo: meu curso não envolverá julgamentos políticos, apenas análise legal. O que sei é que a maior parte dos críticos e
analistas não carrega o pesado fardo e a responsabilidade de um serviço governamental do qual se pede ação efetiva para proteger seu povo de assassinos em massa sem juízo", diz. "Você acha que um programa como "24 Horas" seria popular se mostrasse um agente interrogando um terrorista -que está inclinado a cometer suicídio e detonar uma arma nuclear ou liberar um agente biológico no centro de Los Angeles- com uma conversa polida, circundado por uma
taça de chá e bolinhos?", emenda Sharp.

Observadores estrangeiros costumam citar o seriado como uma das vitrines da paranóia antiterrorista que se disseminou na América pós-11/9. O professor questiona esse status. "A televisão é uma mídia poderosa, que pode moldar, corretamente ou não, a opinião internacional. Não julgo meus maravilhosos amigos europeus e
brasileiros por seus game shows, comédias ou novelas."

"Se Jack Bauer pode, por que não nós?"

SÉRGIO DÁVILA DE WASHINGTON

Separar a obra de arte do "zeitgeist" político em que ela foi concebida e está inserida é como dizer que a cineasta nazista Leni Riefenstahl (1902-2003) era uma documentarista com queda pela película em preto-e-branco. "24 Horas" é, sim, o reflexo mais bem-feito, bem-acabado e de maior repercussão em formato de seriado de TV das liberdades jurídicas que o governo Bush vem tomando em relação a conceitos como habeas corpus e direito a julgamento justo desde o ataque de 11 de Setembro. Seu sucesso e os dilemas éticos que propõe podem ser medidos tanto
pelo curso que agora é oferecido na faculdade de Washington quanto por declarações recentes que vão do ex-presidente Bill Clinton (que gosta de "24 Horas") ao professor de Harvard Alan Dershowitz (que defende que, se na vida real a tortura é inevitável, que pelo menos sua aplicação seja supervisionada por um juiz, como em Israel). Mas é o aspecto "vida imita arte que imita vida" -primeiro narrado por uma jornalista da revista "New Yorker"- que mais impressiona.
Há alguns meses, o militar que comanda a principal escola de formação de oficiais dos EUA pediu uma reunião com o produtor-executivo da série, Joel Surnow, um estranho no ninho de Hollywood, por suas convicções conservadoras.
Queria pedir que os roteiristas "maneirassem" nas cenas de tortura entre Jack Bauer e os suspeitos de terrorismo, pois começavam a ouvir dos recrutas algo como "Se ele pode, por que não nós?". De fato, ampliada, é a pergunta que se impõe a milhões no mundo ao ouvir falar de Guantánamo, das comissões militares especiais, dos "vôos secretos" da CIA, do tratamento "não-convencional" a prisioneiros: se os americanos podem, por que não o resto?

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